quinta-feira, 31 de março de 2011

Farley Granger

I want to tell what speaks to me most

I want to tell what speaks to me most -

My little neighbor, the son of village drunkards,
a bright young boy,
by the gas-lamp - for we have no electricity - he
writes each evening a verse about freedom.
He is no Raznai and no Baradulin and certainly he is
no Dudarai,
but I tell you, we will hear of him one day!

With these optimistic words I want to end
the difficult evening
in our immeasurable Belarus.

Victar Shalkevich, New European Poets, traduzido do bielorrusso por Ilya Kaminsky e Kathryn Farris, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

E é isso

É possível que tudo quanto é belo seja interrogativo; mas o que deveras se comunica não precisa de devassar-se para ser presente e aceite.

Agustina Bessa-Luís, Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, Relógio d'Água, 1992

Bom dia

segunda-feira, 28 de março de 2011

Ezra aos 22

Brindisi

Foi em Brindisi. Não sei se me expliquei bem, as letras não servem às vezes o coração da realidade. Mas penso que um rosto humano é feito de momentos assim, de continuidade, de paixão que não serve aos homens senão para que resistam ao seu grande espanto de viver. Assim é. Vejo Brindisi ao cair da tarde, cidade portuária e desenganada, com grandes bonecas encaixadas às portas, vestidas de azul e rosa. Como meretrizes honestas e sem alma. E os inglesinhos de compridos cabelos, de queixos agudos, feios. A excentricidade deles, os moços de bordo em mangas de camisa, a fuligem nos bancos do convés, a partida de Brindisi à noite e o rulho do mar à noite. E aquele imóvel rosto, aquela recusa fria, o sádico encanto do amor que resistia a participar e a ser. E a beleza, prodígio para sempre pobre e desamparado, não embarcara em Brindisi. Não embarcava em parte nenhuma, eu tinha a certeza disso.

Agustina Bessa-Luís, Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, Relógio d'Água, 1992

domingo, 27 de março de 2011

Tens absolutamente de ver este filme


Following de Cristopher Nolan, 1998

A certain tree in powazki Cemetery

All memory we owe to objects
which adopt us for life and
tame us with touch, smell
and rustle. That's why it's so hard
for them to part with us: they guide us
till the end, through the world.
till the end they use us, surprised
by our coolness and the ingratitude
of that famous spinner Mnemosyne.

Piotr Sommer, New European Poets, traduzido do polaco por Hakina Janod e John Ashberry, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

sexta-feira, 25 de março de 2011

A Infância de Parménides

para Electra Haviaris

Por perguntar, porquê a existência
Em vez do nada?
O professor manda o pequeno rufia
Ao gabinete do Reitor.

Infelizmente, ainda não têm nenhum.
Só há o Rei Minos e o seu labirinto,
E ainda Philemon, que está quase a morrer de riso
Ao ver um burro a comer figos.

Charles Simic, Previsão de Tempo para Utopia e Arredores, trad. de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002

consoada de uma mulher sozinha

chegas a casa com as mãos
cheias de sacos e vincadas
pelo esforço. o silêncio é escuro
antes de acenderes a luz; depois
o silêncio é o mesmo, mas ilumina
a solidão nos objectos da casa. largas tudo
logo à entrada. acendes a luz fria da casa
de banho. pegas no elástico, agarras os
cabelos, escuros. e lavas o rosto. ele
vai ficando na água. até que o faças
escorrer pelo ralo: sem nenhum som.

Bruno Béu, A Sul de Nenhum Norte, n.º1

litoral

Não me queixava quando me
desejavas apenas poucas horas
da antemanhã, sob escuro espesso,
olhos fechados e membros cerzidos.
Era que eu também desejava mas
que me visses em luz monocórdia,
ao olímpico gesto de tatear as tuas costas
de navio ao erro do exílio
e
se nisto eu encontrava estirpe
para os olhos ou abrigo de titânio para
o rosto
ou simplesmente um modo de te fazer
ficar por mais horas até que o pavor
me dissipasse a água e enfim fôssemos
iguais na condição da chuva e o teu
marco no meu tronco fosse algo
que nunca mais pudesses levar ou tomar
de volta.

Tatiana Pequeno, A Sul de Nenhum Norte, n.º1

A sul de nenhum norte

Primeiro número desta revista aqui.

Saudades de Jerusalém

Penso que, na saudade que podemos guardar de uma pessoa, de um lugar, de uma circunstância, de uma coisa, há dois tipos de sentimento que nela se contêm. Um é uma espécie de nostalgia, que é uma palavra que à letra significa dor do regresso, que guardamos das coisas, outro é a nossa solidão, uma solidão como uma espécie de nudez, perante elas. Na nostalgia está o inevitável desejo de regressar a uma coisa que está num lugar irreversível, porque o tempo sobre ela lançou negra mão, perdeu-se, não regressa sobre a forma como ainda a queremos. Na parte de solidão estão duas coisas, este modo de cantar em silêncio, para nós, privadamente, a elegia que guardamos para aquilo que nos falta, é aquilo que nos falta que é o objecto da nossa saudade, sempre, mas também o termos ficado sós do que se perdeu: alguém que deixa de fumar e que sente falta não só do tempo em que fumava mas da companhia do tabaco; o amado, que mesmo partindo por um espaço de tempo muito curto, de quem temos saudade porque temos solidão; uma pessoa cuja companhia amámos e se perdeu; uma cidade e o tempo em que nela vivemos e que para nós se perdeu, a nossa solidão de uma cidade.
Quando falamos da saudade que um Judeu de Alexandria no séc. I podia sentir de Jerusalém, lembro-me daquelas palavras que Fílon de Alexandria põe na boca, salvo o erro de José, no De Iosepho, em que o faz dizer eu pertenço a Deus. Penso que um homem que possa dizer isto, e cada um tem a sua forma privada de deus, não necessariamente coincidente com o Deus de Israel, pode ser deus um livro, ou o amor a um detalhe, ou a alguém, ou num poema esconder-se deus, ou simplesmente no hábito de fazer alguma coisa todos os dias, admitamos que deus pode ser muitas coisas e muitas delas muito profanas, muito pagãs, não poderia acreditar num deus que não dançasse, dizia o outro, admitamos que qualquer homem possa dizer eu pertenço a deus.
Esta ideia, eu pertenço a alguma coisa, penso que para o judeu grego de Alexandria o eximia para sempre da saudade de Jerusalém, porque pertencendo a deus, só estaria só se esse deus lhe dissesse pessoalmente, ou de forma muito veemente lhe mostrasse que, tu estás só. Assim sendo, e com uma eventual falha neste argumento, Jerusalém é uma cidade construída no coração do sábio de Alexandria, mais do que o lugar aonde ele precise de ir. Porque Jerusalém é o lugar de Deus e ele pertence a Deus. A sua pátria pode ser uma cidade grega à vontade, porque a cidade-mãe é e não é a cidade do Templo, haverá sempre o Templo e a cidade onde regressar enquanto ele pertencer a Deus, Deus garantirá que assim seja. Por isso acho que no Salmo 137 quando se diz mais coisa menos coisa se eu te esquecer Jerusalém que apodreça a minha mão direita, que a minha língua se cole ao palato, se eu não te elevar acima da minha maior alegria, Jerusalém. Não é sobre uma cidade de pedra que estas frases são ditas. Então, somos livres nas coisas que mais determinadamente amamos, naquelas para as quais reservamos uma saudade constante mas também uma saudade que é impossível de saldar.

terça-feira, 22 de março de 2011

Alfarrábio

Nunes Batista é uma livraria on-line que se dedica à compra e venda de pequenas e grandes bibliotecas, livros usados, raros e esgotados.

Não raras vezes retira-se para junto do lava-loiças para meditar

Estais convidados

Heavy burden, your fragile body

With my gnawed liver,
With my lashed lungs,
With my fingers stained and tarred from nicotine,
I am of no use to anyone.

I cannot believe
That you would be foolish enough
To bestow your love on me.

I don't know what to do
With my insomnia,
With those shadows of fallen friends.

Heavy burden,
Your fragile body.

Abdullah Konushevci, New European Poets, traduzido do albanês por Robert Elsie, Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

segunda-feira, 21 de março de 2011

Pequena prece

Para Yiannis Ritsos

Pedi-te que partilhasses
pão
e sal comigo.
Assim aos domingos jamais tornaria a temer
o salgado.

Tu porém cantaste na tua solidão
obscuras incompreensíveis
notas.

Apenas te ouvia dizer
o corpo,
o corpo
(da alma casa).

(mais ou menos) Marigo Alexopoulou, New European Poets, Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

domingo, 20 de março de 2011

F Minor - D 940

Of these two pianos one must surely be
the other's misgiving. Play it at night
before bed, it's blood, play it first thing in the morning,
one is the other's phantom. Naked, wet,
woman, how did it ever happen
that a man struck up these sounds:
of the two pianos, at least one feels broken.

Enis Batur, New European Poets, Clifford Endres, Selhan Savcigil-Endres (trad.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Dear Bartleby

You loved Wakefield, my young friend, and there's more
to it as welll, if I'm not reading too much
into what you've written, you're overly affected
by my odd tale. "I was surprised,"
you're saying somewhere, but in truth it's you
who surprised me with your astonishing remark:
you plainly think I write what I live,
the lives woven into my books you see
as nectar gathered from my own days.
No! Don't be downhearted, the stale life you think
you lead is a hurricane next to the undeviating
flow of my hours. Friend, I never had a life.
And in view of the perfectly empty years
of the past I never will: my body
is a boat adrift on a calm lake surrounded
by mountains: everything, yes everything
begins and ends on the precarious stage
at the bottom of my mind. If I stopped
I'd go crazy, but I can't stop:
without letters tumbling down to my fingertips,
I'd cracked up in nothing flat.

Enis Batur, New European Poets, Clifford Endres, Selhan Savcigil-Endres (trad.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

sábado, 19 de março de 2011

A terra que é sempre tão difícil

Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó-de-arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo do meio-fio os andaimes da sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém estivesse a prestar atenção, fazia o possível para que ninguém percebesse que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil.


Clarice Lispector, "O Búfalo", Laços de Família, Livros Cotovia, 2008

Não podes tirar uma fotografia a isto: já passou


















Ontem vi os últimos três episódios de Six Feet Under, os depois da morte de Nate. Há esta cena em que Ruth diz a Claire, this is the worst thing that could happen to anyone (a morte de um filho). Lembrei-me daquele poema de Kavafis, Deslealdade. Nesse poema, Kavafis fala da deslealdade de Apolo para com Tétis. A trama do poema é simples: o deus profetiza no casamento de Tétis com Peleu que o filho que nascer dessa união terá uma vida longínqua e que nunca será tocado pela doença. Enquanto Aquiles cresce, e a sua beleza é alarde da Tessália, a deusa recorda-se das palavras de Apolo e alegra-se. Mas um dia chegam de Tróia velhos mensageiros, trazendo a notícia de que Aquiles está morto. Tétis fica louca. Arranca cabelos, atira anéis ao chão, no meio do seu desespero pergunta, onde estava, onde estava Apolo, esse deus que diz palavras agradáveis nos banquetes. E os velhos respondem-lhe que o próprio Apolo desceu a Tróia e ajudou os troianos a matar Aquiles. E o poema acaba aqui, porque depois disto não havia mais respiração possível. Não havia como continuá-lo. Neste poema, guarda-se de verdade a imagem perfeita da deslealdade. Este era um oráculo que Apolo não podia ter dispensado a Tétis, porque ele deveria saber que não se concretizaria.
Com Ruth Fisher penso que a deslealdade é outra coisa, de outra forma. Podíamos dizer que é a vida que lhe é desleal. Ela já tinha perdido o primeiro Nathaniel, o marido, e o segundo Nathaniel (e em muitas coisas segunda versão de Nathaniel) já tinha sido poupado uma vez. Não lhe poderia ser tirado. Era um acordo tácito, que ela poderia ter pensado que a vida tinha assumido com ela. Alguma espécie de acordo. A violação deste acordo poderia querer dizer: a vida será sempre desleal connosco. Ficará para sempre em dívida para connosco porque somos efémeros.
Mas a verdade é que Apolo não mentiu a Tétis, pelo menos não tecnicamente, a doença nunca toca a Aquiles, ele morre demasiado jovem para que isso suceda, e a sua vida é de longa duração, porque a sua memória nunca perecerá (é ele próprio quem faz este acordo com o destino) porque haverá um Homero que o cante.
Mas Ruth Fisher, personagem, não é uma personagem de mitologia grega, é-nos mais próxima. É uma senhora da Califórnia em 2005, a excessiva proximidade da sua dor tira-nos o pouco distanciamento que tínhamos em relação a Aquiles. Porque Nate não é um herói mítico cuja morte fosse o nosso horizonte de expectativa em relação a ele.
Na cena em que Claire parte para Nova Iorque, ela pede à família que lhe resta que se junte para lhes tirar uma fotografia. Nate aparece-lhe como um espectro e diz-lhe qualquer coisa como: não podes fotografar isto, não podes fotografar isto porque já passou. O que ele poderia estar a dizer é: a vida é efémera, este momento que quiseste agarrar está morto. Mas o que ele lhe está a dizer é tens de te precipitar para o instante seguinte, vivê-lo o melhor que puderes. É por isso que Ruth não se mata, que não se afunda para sempre. Não é porque a dor pela morte de um filho pudesse de repente entrar nos limites do tolerável, é porque continuar a viver talvez seja conquistá-lo, a ele que se perdeu, a cada instante, em cada uma das coisas que continuam. Talvez seja por isso que Six Feet Under é tão bom. Daí a árvore que Andrei vê em Guerra em Paz.

Capas lindas

quinta-feira, 17 de março de 2011

De "De Imagine Mundi"

...
Um contexto vivo que fosse capaz de me aceitar,
uma densidade de luz que pudesse revelar
da imaginação as verdadeiras possibilidades
uma linguagem apropriada cuja ordem subtil
pudesse conceder a esse espanto a profundidade da tua beleza

Que poder pode medir o galope
do desfigurado sonho que se esvaece para lá do horizonte
que desejo pode dizer este decisivo gesto

que nada pode dizer?
...

(Mais ou menos) Haris Vlavianos, algures em New European Poets, Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Tenderly Caressed Sucked Licked and Spanked

I don't think I've ever been on better terms with myself
or ever written better
than when I was fifteen everyday I used to commit
several pages of pornographic writing before going to bed
only, only for personal use

I don't know if you can imagine what went on in those little tales
but I can tell you that in their every word
I was tenderly caressed sucked licked and spanked
by dozens of women men children animals
who all thanked me for existing
there was no love between us only what
I'd call perfect
communication

Dan Sociu, New European Poets, Adam J. Sorkin e Radu Andriescu (trad.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Nada serve

Há duas semanas comprou dois livros de Levinas. Nunca chegou a tirar da mesa de cabeceira e a tornar a arrumar nem o Ulysses nem o Concepts of Modern Art. Vai para dois anos que leu o primeiro e deixou a menos de meio o segundo. Tem 24 anos e dentro de treze dias torna-se mestre em literatura grega. Não serve. O que pode querer dizer, como no poema de Sophia, que jamais tornará a servir senhor que possa morrer e que, portanto, não serve ninguém, excluir ou incluir deus nesta especulação é problema de outra ordem, ou simplesmente que não serve. Nada serve. Às vezes nada serve.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Hoje acordei assim

Um amigo escreveu este post, sobre o preço obsceno que certas grandes imprensas universitárias cobram pelos seus livros e sobre o impacto que isso tem em nós, países mais pobres. Há, de facto, preços praticados em paperbacks que são totalmente ordinários, para não lhes chamar ofensas ao pudor. É verdade que as nossas bibliotecas universitárias têm falhas comoventes, no sentido em que muitas vezes nos chegamos à estante já de coração acelerado e com vontade de desatar a esmurrar o lugar vazio onde devia estar aquele livro de que precisávamos como de pão. Há também aqueles casos em que sucede colecções inteiras de livros desaparecerem de uma biblioteca e temporariamente ninguém saber onde eles andam ou parecer estar muito preocupado com isso.
Muitas vezes um organismo público acaba a adquirir por duas vezes um livro que já existe, o que muitas vezes representa um investimento na ordem destes valores, o que até pode parecer pouco, mas multipliquem isto por vários casos ao ano, em vários centros de investigação e para diferentes bibliotecas. Ao facto de não sermos ricos que chegue, soma-se, então, muitas vezes o facto de não sermos eficientes que chegue.
Ou de a disciplina que estamos a estudar não ter tradição na Faculdade em que a estamos a estudar, i. e., nunca nenhum professor ou investigador fez uma tese sobre aquilo ou é uma cadeira que nunca foi dada ou foi apenas marginalmente dada. A biblioteca pura e simplesmente, nesses casos, é de uma pobreza que além de franciscana fere sensibilidades. E muitas vezes não são disciplinas marginais: digamos por exemplo estudos judaicos, ou estudos judaicos em contexto helenístico, ou estudos judaicos no império romano. Mas não é preciso ir a nichos tão específicos. Digamos Ésquilo ou Homero. As nossas bibliotecas não acompanham. Claro que a falta de dinheiro é determinante. Mas outros factores também o são. Manuais tipo este, porque não existem na biblioteca de uma Faculdade de Letras? E depois há ainda este facto completamente assustador, que demonstra que o nosso problema tem uma raiz um pouco mais profunda do que aquilo que pensáramos.
Ontem copiei aqui um excerto de um livro que se chama The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Este livro, que se tornou um clássico absoluto, vai na sua vigésima terceira edição, desde 1986, o que dá uma reimpressão por ano, mais coisa menos coisa. Em Portugal nenhuma editora investiria num manual de 544 pp. dedicado a um tema destes. E se investisse a tiragem seria qualquer coisa como trezentos exemplares, a oitenta euros o exemplar ou algo do género. Veja-se o exemplo da recente tradução de Tucídides: como divulgar os estudos clássicos se traduzimos um autor tão perene para o vender a quarenta euros? Para daqui a uns meses o estarmos a queimar ou a vendê-lo em feiras a três euros (comprei a minha edição de Lesky, uma óptima história da literatura grega, calhamaço imenso, traduzido na Gulbenkian, por 10 euros, um amigo uns anos mais tarde comprou-a por dois)?
O nosso problema, além da falta de dinheiro, é o de que não temos a tradição de estudar as nossas tradições, ou têmo-la menos que marginalmente. O resultado produzido até agora, com esta política, não me parece que tenha sido brilhante, sendo directa, somos um país atrasado e também por isto continuaremos a sê-lo. E não digo apenas nos estudos clássicos, digo em todas as outras coisas, sobretudo numa cultura de ler. Não a temos. E temos miúdos menos imaginativos, menos capazes de raciocinar abstractamente. Mas é tão cliché estar para aqui a dizer isto a esta hora da manhã que me parece abjecto. Porque batermo-nos por isto (fazer miúdos lerem poesia, lerem literatura, a Odisseia nas escolas, um ano ou dois de latim, blá, blá) já nos parece idiota. E quando chegou a este ponto, acabou.
Em muitos casos um académico dá uma conferência para três ou quatro amigos, dos quais dois nunca estarão bem certos do que ele está a falar, mas vão lá estar porque são amigos dele, dois riem-se das suas piadas porque acompanham mais ou menos, e isto é a ciência em Portugal. Há excepções, claro, aqui há uns anos houve um professor nosso que deu umas conferências na Culturgest cuja afluência nos fazia pensar que ele podia ser uma estrela de rock. Porque as pessoas que lá iam sabiam que aquelas eram conferências sobre temas clássicos mas enraízadas no coração da vida. A ciência altamente específica sobre um assunto, é claro que é indispensável, mas o meramente falar sobre as coisas, dizer porque as amamos, num país em que essas coisas não são e deviam ser estudadas, isso é o fundamental. Isso é começar.

domingo, 13 de março de 2011

The fallen angel
who looked at himself
in the water
drowned in his image

Anise Koltz, New European Poets, Pierre Joris (trad.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Conflito

We find, then, in Aristotle's thought about the civilized city, an idea we first encountered in the Antigone: the idea that the value of certain constituents of the good human life is inseparable from a risk of opposition, therefore of conflict.

Martha C. Nussbaum, The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy, Cambridge, 2009 (23ª reimp.).

sábado, 12 de março de 2011

Figure in a Village

What is he thinking of, what
is he dreaming? Black city shoes,
shirt neat as a pin, trousers with their crease,
remembering from time to time
his komboloi he runs the beads along
then, chin and hand again
half shuts his eyes, sets off once more
in what i'd call his reverie
outside the taverna, the bottle
of mineral water scarcely broached.


Paul de Roux, New European Poets, Helen Constantine (trad.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Canção do Engate


Um excerto da Arte de Amar, de Ovídio (43 a.C.-c.17 d.C).


E não percas as famosas corridas de cavalos;
     muitos são os prazeres que proporciona o circo repleto de povo.
Não tens precisão dos dedos, para poderes segredar o que te vai na alma,
     nem é por acenos que deves acolher aquela que assinalaste;
junto a essa mulher, sem ninguém a impedi-lo, aí te deves sentar;
     encosta o teu corpo, tanto quanto te for possível, ao corpo dela;
ainda bem que as marcações te obrigam, mesmo que não queiras, a encostar-te,
     e que ela, graças às condições do lugar, tem de consentir ser tocada por ti.
Hás-de, então, buscar um começo de conversa amigável;
     sejam lugares comuns a desencadear as primeiras palavras:
"A quem pertencem os cavalos que ali vêm?", faz por perguntá-lo, interessado,
     e, de pronto, o que ela apoiar, seja quem for, apoia-o tu também.


(Ovídio, Arte de Amar, I.135-146. Trad. Carlos Ascenso André, Livros Cotovia)

sexta-feira, 11 de março de 2011

alexandria

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me,

sensação amada continua a voltar

Konstadinos Kavafis, «Continua a voltar»

I

onde se perderam aqueles cadernos a que
teimosamente tornavas para escrever
de novo e de novo as mesmas frases
descalços pés apoiados na arcada da varanda
o sol dando-te no rosto cadernos onde
teimosamente ensaiaste uns quantos
gestos um verão inteiro atrasando-te
onde estão esses cadernos que não
chegaste a rasgar e a coser outra vez
onde com ténues fios brancos e estreitas
agulhas apenas alinhavaste frases
esses furtivamente comprados em estações
de autocarros furtivamente guardados
em gavetas interiores de armários com chave

II

rapariga de cabelo e nome vermelho
de vermelho pintando caixilhos de
janelas mãos de vermelho manchadas
ela emerge à flor da voz mas em
pontas de pés uma prudência tão
ensaiada que não teria como persuadir
outra palavra dita mergulharia no vermelho

III

aquele que conversando pôde apenas
aprender uma forma de ver esse nunca
falou contigo inteligente e cínico calculou
a projecção do próprio eco a conversa
entrou em areia pela noite alastrou
às lanternas ténues fios brancos e estreitas
femininas mãos por engano a luz feriu-te
um pouco acertando-te no rosto tu reclamado
em cor de sépia se a memória fosse um resgate
uma coisa sem fala e sem pena uma memória
calorosamente guardada e esquecida
como coisas que podemos suportar perder
porque nos foram totalmente concedidas

IV

as pequenas nostalgias como fios se prendem
em encaixes de mãos e ombros aquele
que falou contigo junto às vinhas podadas
no dia uma conversa mutilada na mesa
de outono (t. s. eliot) o cheiro de uvas mãos
vermelhas como terias tu provado esse vinho
com que timidez reclamar o que sempre
foi nosso um regresso por hábito à exígua e pobre
divisão da casa às paredes nuas solenidade
de mesa em sala vazia como corda de piano
cuja tecla certa se pressionada certa

V

tu na mesa de outono te sentaste o rigor
do corpo direito as mãos nos joelhos
pousadas como aqueles soldados
que muito tempo longe regressam
quando já ninguém os esperava
com altivez olham o que é deles
e já só podem desdenhar assim
o modo como atravessas de novo
e de novo a estreiteza de certas ruas

VI

continuarás a voltar a estes quartos
junto aos portos de alexandria como
fez kavafis nos seus poemas o encontro
e diálogo com as coisas será por fim
o cheiro de rosas nas mãos o ajeitar
da última flor no vaso onde a aprisionaste
será como nesse livro de agustina que agora
leste uma atenção ao mundo muito dada

VII

será uma pequena variação de cor
na luz do dia será esta forma de silêncio
de não precisar de falar que só nos une
àquilo de que somos muito irmãos o que
de imediato e não tão tragicamente sabemos
e sabemo-lo com a simplicidade de dizer
que sempre o soubemos como se cega
invocação corrida no vazio
disséssemos continua a voltar

Tatiana Faia

Livre

Nenhum homem está a ser livre se não se abstém de emparedar os outros entre os quatro muros da sua opinião...

Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira (fixação de texto), Guimarães, 2009

A justiça

«A justiça concentra em si todas as excelências.» É assim, de modo supremo a mais completa das excelências. É, na verdade, o uso da excelência completa. É completa, porque quem a possuir tem o poder a usar não apenas só para si, mas também com outrem. Pois, de facto, há muitos que têm o poder de fazer uso da excelência em assuntos que lhes pertencem e dizem respeito, mas são impotentes para o fazer em relação a outrem. E é por esse motivo que parece estar correcto o dito de Bias, segundo o qual «o cargo público revela aquilo de que um homem é capaz», porque no desempenho das suas funções já se está em relação com outrem e em comunidade.
É por esta razão, então, que a justiça é a única das excelências que parece também ser um bem que pertence a outrem, porque, efectivamente, envolve uma relação com outrem, isto é, produz pela sua acção o que é de interesse para outrem (...)

Aristóteles, Ética a Nicómaco, António de Castro Caeiro, Quetzal, 2006 (segunda edição).

Bom dia

quarta-feira, 9 de março de 2011

Do pegar no apêndice para bem pronunciar o português

A Senhora Rattazzi, do Camilo (1880), é das cousas mais divertidas que tenho lido nos últimos tempos. É uma recensão/reacção a um Portugal à vol d'oiseau da dita cuja senhora, que Camilo arrasa de forma verrinosa, com passagens a roçar o brejeiro, denunciando as incorrecções e imprecisões da obra. 

Fica aqui um cheirinho, respeitando a orthographia original. Os itálicos são também do original, e, caso escape a alguém mais distraído, servem para o autor sublinhar as asneiras da Sr.ª Rattazzi ("a princeza" do primeiro excerto).

Reflexionando conspicuamente sobre a nossa deploravel instrucção publica, sahe-lhe de molde a contar que nós, os portuguezes, a um brazileiro que passa chamamos macaca. Que o brazileiro vai passando, e nós dizemos: É una macaca. Não é tanto assim; não se lhe desfigura o sexo. Se a princeza, ao passar, ouviu dizer: é una macaca, isso não era com o brazileiro.
(p. 30)


Na carta XXIII, esta mirifica epistolographa mette a riso a nossa pronuncia nacional, os sons nasaes, as desinencias oês e em , que nos ficaram da lingua galoga, e se pronunciam ouenche, anhon, «com accento violento de nariz, que só bem póde imitar-se pegando n'este appendice com a mão toda para bem proferir o portugaison». Sim, elle é preciso pegar no appendice para bem pronunciar o portugaison.
(pp. 35-36)





A edição consultada é um fac-simile, da Calçada das Letras, e não vai além disso mesmo, de uma reprodução fotográfica do original. Fazia falta uma boa introdução. É que se o leitor de Camilo, em 1880, sabia com toda a segurança quem era a Sr.ª Rattazzi e a obra em questão, o leitor do século XXI não sabe.

Pôr-do-sol em Fossoli

Ontem chegou-me a casa um livro de poemas de Primo Levi. Tinha-o encomendado há tanto tempo que entretanto me esqueci que o tinha encomendado. Quando o abri, dei com um poema com uma alusão a um poema de Catulo. Isto foi bom, porque me permitiu fazer um post para aquele blogue feito por um grupo de tarados das clássicas de que faço parte (do blogue e do grupo de tarados, evidentemente) e porque me lembrou de três versos que são o carpe diem de Catulo. Ao contrário de Horácio, que era um tipo às vezes económico e só precisou de duas palavras para dizer uma coisa, Catulo precisou de três versos. À parte querer dizer que Catulo era um poeta palavroso, que não quero porque não era, acho até que à sua maneira Catulo era o James Dean em modo Fúria de Viver dos poetas romanos, a minha atenção ficou presa aos três contextos dos poetas, a evocação do mesmo sentimento em três modos diferentes. Horácio pode escrever apenas carpe diem por muitos motivos que agora não vêm ao caso, mas penso que sobretudo porque ele é o homem a quem Augusto perdoa Filipos e a quem concede as condições para uma vida boa. Catulo, anterior a Horácio, cumpriu o lema que se associa a James Dean, live fast, die young, e, excessivo como era, excessivo como um poeta romântico, no mesmo poema em que pede à amante que lhe dê um milhar de beijos e depois outro milhar, há também esta espécie de momento de silêncio que só existe nos melhores poemas (um acender de uma única luz no escuro) que o faz dizer sóis podem pôr-se e tornar a nascer/ para nós quando morrer a breve luz/ deveremos dormir uma noite perpétua. Catulo deixa de fora propositadamente o que diz Horácio, isto fica implícito, é mera alusão. Primo Levi, por sua vez, é um homem de outro tempo e de outro contexto, por linhas de arame farpado (de um campo de concentração) ele viu o sol caminhar para o ocaso e sabe o que significa não regressar. A contemplação não é apenas estética é antes e sobretudo ética, a compreensão dessa urgência de um modo mais literal e mais terrível do que essa certeza o fora ou podia ter sido para Horácio ou Catulo.

It's true everything you touch

It's true everything you touch
sours and vanishes,
every memento your hand caress
brings no feeling,
those you loved
have slipped away down the street
mounted on a horse made of wood.

It's true, but this evening,
at least this evening, celebrate it.

Violeta Rangel, New European Poets, Frank Bergon, Holly Bergon (trads.), Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

Fã de Bonhoeffer

terça-feira, 8 de março de 2011

Metamorfoses X.298-502

A história é contada por Ovídio, em Metamorfoses X.298-502.




http://glynnisfawkes.com/the-story-of-myrrha/

Oscar para a melhor cena num livro

Foi para o lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!
Estava ali perdendo a terceira aula, no longo banco do lavatório, em frente a várias pias. "Não faz mal, depois copio os pontos, peço emprestado os cadernos para copiar em casa - estou sozinha no mundo!", interrompeu-se batendo várias vezes a mão fechada no banco. O ruído de quatro sapatos de repente como uma chuva miudinha e rápida. Ruído cego, nada se reflectiu nos ladrilhos brilhantes.

Clarice Lispector, "Preciosidade", Laços de Família, Livros Cotovia, 2008

Ter esperado

Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta?

Clarice Lispector, "Preciosidade", Laços de Família, Livros Cotovia, 2008

segunda-feira, 7 de março de 2011

(Segunda-feira)

...i have to get out:
exit biology, remain in my body

Chus Pato, "and now the panopticon is a ruin", Erín Moure (trad.), New European Poets, Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

12th Man: Sport City London



























Mais aqui.

sábado, 5 de março de 2011

senador euzébio, 29

Para Ferreira Gullar

Data de 1945, ano de O engenheiro,
o edifício ligeiramente deslocado
em seu lote. O corte, a cortesia
do ângulo cavalheiresco: como que

deslizou no esquadro exato para
dar lugar à murta, suas flores miúdas,
brincos brancos cujo perfume
desvia a igreja, o sol, a rua.

Eucanaã Ferraz, Cinemateca, Edições Quasi, 2009

Mimnermo

Tinha amigos que me diziam, antes de eu ler esse livro, que o Guerra e Paz era o romance perfeito. Havia nessa altura uma série de outros romances que eu achava, mesmo sem ter lido esses livros de Tolstói, que, de certeza, eram tão bons ou melhores, a começar pelo facto de a maior parte das obras em que pensava terem um só volume. Inferia que onde há mais economia, há necessariamente um domínio melhor do que se está a fazer, o que, claro, não é uma regra exacta. Uma certa impressão de pudor sempre me impediu de contradizer esses amigos, primeiro por respeito, depois porque em certos casos compreendia que, mais do que ofendê-los por discórdia desinformada, lhes infligiria uma certa mágoa. Não sei se o romance perfeito existe. Espero que não.
Ontem falávamos de personagens do Guerra e Paz. Concluí que me lembro de episódios como a morte de Pétia Rostov, a morte do pai Bolkonsky ou de coisas que me fazem rir, como, no Livro I, o episódio do urso e do guarda. A memória da maior parte destas coisas, com o passar do tempo, ecoa numa parte da consciência que só guarda uma impressão de proximidade, uma aparência de vida. Mas há dois episódios que para mim ficam isolados. A descrição do primeiro encontro entre Maria Bolkonskaia e Nikolai Rostov, numa revolta de camponeses em Lissie Górie, e a última vez que Andrei olha para Natasha. Porque há uma continuidade enternecedora nas coisas que se fecham, que se cumprem. Andrei morre, nunca casará com Natasha, não verá crescer o filho que teve, parece que a vida dele falha. Mas penso que se cumpre, porque, segundo me lembro, e lembro-me tão mal, na última vez (e há esta passionalidade muito usada de ser a última, mas tinha de ser a última, sabia-o Tolstói e nós também) em que ele a olha, essa é a única vez em que a vida é inteira, não perfeita, e nisso está a redenção, um olhar de relance em que se fica pacificado mas sem o peso por vezes humilhante e amargo da resignação, como se Andrei finalmente tivesse percebido o que teimava em escapar-lhe e tivesse percebido que isso áxion esti, como diriam os Gregos, que era digno e tinha valido a pena, o que quer que isso fosse. Além disso, pensava na altura que Andrei tem de morrer porque Andrei é Tolstói e não pode haver dois Tolstóis no mesmo romance.
A felicidade que deveria ser de Andrei desloca-se lentamente para outras personagens, desloca-se sobretudo para Nikolai e Maria. E isto prova, para lá de toda a dúvida, que a ideia para o argumento original de Guerra e Paz estava já contida naqueles versos de Mimnermo, roubados por sua vez à Ilíada, que diz assim como as folhas criadas na estação florida da primavera,/ que subitamente crescem sob raios de sol,/ assim os homens. Porque Mimnermo falava de efemeridade, falando também de continuidade.

sexta-feira, 4 de março de 2011

terceto

Não há matéria para se fazer a tristeza
nessa manhã, manhã perfeita
se a mão que me deu maio fosse a tua.

Eucanaã Ferraz, Cinemateca, Edições Quasi, 2009

A responsabilidade

Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

Emmanuel Levinas, Ética e Infinito, João Gama (trad.), Edições 70, 2007

a costureira

para Danielle Jensen

Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta

para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse

o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.

Eucanaã Ferraz, Cinemateca, Edições Quasi, 2009

A consciência das línguas que falamos

Meu aluno por uma aula apenas, pequeno de mal chegar à cadeira, disse-me com toda a certeza do universo, e com pinta de estar disposto a bater-se por ela, que o alentejano era uma das línguas que tinha vindo do latim.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Lapidar

A questão do bem depara-se-nos já sempre numa situação irreversível: vivemos.

Dietrich Bonhoeffer, Ética, Artur Morão (trad.), Assírio & Alvim, 2006

jerusalém

Electra: No terror one can name —
no suffering of any kind, no not even
affliction sent by a god, is so terrible
that human nature can't take it on.


Eurípides, Orestes
John Peck & Frank Nisetich (trads.)


I

precisavas de uma linha de tempo que fosse
como aquelas rodas imperfeitas que meninos
conduzem em aprumos de aros de arame
por imperfeitas ruas de pedra cada oscilação
o eco de pequenos oráculos prováveis traços
de riscar o chão ecos de apostas mentais
curva de obstinado voo e consequente queda


II

curvas-te de mãos atrás das costas ajeitas no rosto
os óculos narciso curvando-se na direcção
de um espelho branco de água com uma urgência
desesperada com uma urgência com a vida nela
costurada como no quadro de waterhouse

III

a rapariga lê com um livro no colo quem
poderia dizer o que lhe diz o poema
o ar que respiramos e que como cor ou
estilhaço nos atravessa que cor nos espera
ao fim de cada dia penso mãos sobre esta
mesa negra de mármore onde me sento
para escrever outros poderiam entrar
pelos dias dizer que não te chega a tocar
minha mão direita e ela que apodrecesse
jerusalém se eu te esquecesse

IV

mas que consolo haverá na memória de uma cidade
quando já varámos todo o espaço que nos foi dado
tudo o que desejámos e o que nos restava e numa
volta de twisted plot a única coisa que entre as mãos
ainda te corre é já areia se não é cinza essa areia

V

mas na verdade a voz do outro lado do telefone
teima apenas em dizer coisas de rito estudado
tom de voz tão prático que enerva o verso
era grata la voz del agua/ a quien abrumaron
negras arenas desejaste tantas vezes perante
o eco que a resposta fosse sem gratidão

VI

o telefone por vezes é como bomba
com relógio incorporado pode explodir
a qualquer instante assim explodir
nas mãos a tua voz plena de cor
dispersando-se como noite de verão
em parque de diversões as cores
de um fogo de artifício púrpura e amarelo
e vermelho como se a elegia fosse alguém
que se despedisse acenando com um sorriso
um gesto cujo peso não nos pudesse ferir


VII

assim a phala por vezes se converte numa forma
de cabeça contra ombro e olhos fechados
como par que dançasse as pequenas oposições
dos corpos enantiao como diriam os gregos
que quer dizer eu oponho-me eu ofereço
uma pequena resistência aquela que o peso
do corpo sobre o chão permite não mais que isso

VIII

e assim fincarás os pés nas marcas das tuas próprias
pegadas fixarás o olhar nas casas vermelhas na linha
do sol que os teus dedos terão talvez afagado
também esta superstição quase pretensiosa
de que uma parte de nós fica presa fica em suspenso
no que com muita intenção tocamos mas nisto
esconde-se uma forma de noite nunca saberemos
como soam nos corações dos outros as nossas intenções

IX

as conversas no café rodeavam-te como uma luz
quando tornaste a erguer a cabeça e eu pude
finalmente ver o teu rosto isto é vê-lo com toda
a certeza com o peso da matéria que faz os corpos
embeberem-se de memória falo-te desta coisa
que esbate a solidão mesmo quando não podemos
saber que indelével marca deixam os dedos na pele
a única certeza é que nem todas as evocações são
feitas de mármore e que mesmo para essas
sempre haverá aqueles que contra o frio toque
da pedra se debatem sempre haverá aqueles

X

que sabem que sempre haverá uma música
que diga as primícias da primavera onde se prenda
a nossa impressão de familiaridade com as coisas
um rasto de vermelho contra verde na flor
que finalmente floresce a vaga evocação de
um som de uma conversa de alguém que
em sussurro falasse a memória de pouca luz
numa sala mal iluminada

XI

haverá sempre o gesto que te cante mesmo
quando não houver poesia mesmo onde e quando
chegarmos à memória de nada haverá sempre
cama onde te deites o fechar dos olhos o lento virar
do corpo uma última linha de tempo o faiscar da luz
na roda de arame a intacta promessa deste lugar aqui
e agora transferido para um pouco mais tarde
e sabes isto porque também tu chegaste
ao fim de todas as cidades e pudeste regressar


Tatiana Faia

quarta-feira, 2 de março de 2011

Pastilhas Brancas

Dormi calma por duas pastilhas brancas embalada,
como quem não tem ocupado a alma por tudo que dói.
Talvez apartada de mim, minha dor tenha andado por aí perdida
ou tenha ficado o tempo todo aqui bem próxima
estendida sobre a cadeira
como essas roupas que se despem na véspera
e se vestem sem pudor no dia seguinte.

Simone Brantes in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

Falar hoje exige

Falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
um carta de minúcias
com "forgive
me the personality"

Ricardo Domeneck in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

terça-feira, 1 de março de 2011

Don't explain



Caros senhores, a esta hora apetece-me perorar sobre esta música de Nina Simone, que na verdade e tanto quanto sei, foi primeiro cantada por Billie Holiday. Apetece-me perorar sobre ela como Cícero no exórdio do Pro Milone ou do Pro Archia. Mas sou desarmada pelo começo, o começo esmaga-me. Hush now, don't explain, there ain't nothing to gain. As coisas que mais verdadeiramente sentimos são as que confinam com o indizível, com o inexplicável. Também sobre isso é aquilo de que trata esse filme de Aronofsky, Black Swan. Daí também brotou a poesia, bela alegoria disso é a natureza tão dúplice de Apolo, deus de arco e lira. O que cura e mata, todas estas coisas que já alguém antes de mim notara.
O que dá cabo de mim a esta hora é aquele verso de Ruy Belo em Elogio de Maria Teresa, contigo fui cruel no dia a dia, tal como dito por Luís Miguel Cintra, as palavras lentas, arrastadas, pesando. Como se uma identidade mais verdadeira para o amor só se conquistasse a partir daí, por contigo ter sido cruel no dia a dia, Clara Rilke, escreveu Ruy Belo. Neste verso ele toca a natureza de uma coisa paradoxal, absurda, porque só as coisas absurdas podem ser absolutas, de outra forma explicar-se-ia o absoluto e ele estaria desmontado. É por isso que a poesia pode ser uma coisa total, é aí que está o seu poder e a sua possibilidade de nos mover. Aristóteles escreveu as pessoas são de um modo geral estúpidas, mas sempre as arrasta o belo. Eu penso que ele o diz sem crueldade. Que o diz com o espírito de dissecador de rãs que era. Nina Simone, a cantar esta música, não precisou de dar uma volta tão grande. Hush now, don't explain, there ain't nothing gain, I'm glad that you're back, don't explain. Alguém fora cruel com ela no dia a dia. Mas ela já estava para lá disso. Sei que já li poemas com essa mesma coreografia. Pensei que Ovídio, na minha metamorfose favorita, arrastou o indizível até à corporização da metáfora, uma mulher que por causa de uma brisa o próprio amante com um dardo trespassa e no último sopro que exala ela própria em brisa se converte. Suck that, Aristotle.